Galileu Galilei

Galileu: o popularizador da ciência

Inquieto, polêmico, criativo, ele simplificou e divulgou as teorias científicas. E com isso lutou por um mundo melhor

Verão de 1609: um texto curioso chega às mãos do matemático e físico italiano Galileu Galilei (1564-1642). Era a descrição de um instrumento, construído na Holanda, que permitia enxergar coisas distantes como se estivessem próximas. Tomando por modelo essa luneta holandesa, Galileu fabrica, ele mesmo, um aparelho semelhante, capaz de aumentar nove vezes o tamanho aparente dos objetos. Tinha, na época, 45 anos, e, embora desfrutasse de um certo prestígio, como professor de matemática da Universidade de Pádua, não havia publicado ainda nenhum trabalho de peso. Sempre lutando com dificuldades financeiras, precisava dar aulas particulares para complementar o salário. Mas estava destinado a voar alto. Nos meses seguintes, não parou de aperfeiçoar o telescópio e apontou-o para o céu. As descobertas que realizou revolucionaram a cosmologia e elevaram sua fama à altura das estrelas. Tanto quanto por essas contribuições científicas, ele se imortalizou como popularizador da ciência e porta-voz de idéias novas e ousadas.

Durante os quase três anos em que esteve dominado pela febre da observação astronômica, Galileu verificou que:

Em vez de ser uma mancha esbranquiçada no firmamento, a Via Láctea era formada por "incontável multidão de estrelas amontoadas";

O número de "estrelas fixas" superava "mais de dez vezes as conhecidas anteriormente"
;

A superfície da Lua não era "perfeitamente lisa, livre de desigualdades, nem exatamente esférica", mas, "tal qual a superfície da própria Terra, diversa por toda parte, com montanhas elevadas e vales profundos";

Júpiter era circundado por quatro luas, "nunca vistas desde o começo do mundo";

As estrelas não tinham contornos definidos e circulares. Eram como chamas, que "brilham, vibram, cintilam". Ao passo que os planetas se apresentavam "sob a forma de pequenos globos redondos, uniformemente iluminados";

Vênus mostrava fases como as da Lua;

Saturno exibia uma protuberância na altura do equador, que ele atribuiu a duas pequenas luas opostas, bem próximas da superfície do planeta (tratava-se, na verdade, dos anéis, identificados pouco mais de 50 anos depois pelo matemático, físico e astrônomo holandês Christiaan Huygens);

As manchas solares eram "exalações" da própria superfície do Sol.

Carta na manga
Com suas descobertas astronômicas, Galileu derrubou uma concepção que dominava a cosmologia desde os tempos de Aristóteles, no século 4 a.C. O antigo filósofo grego dividira o cosmo em duas regiões diferentes. A Terra e suas imediações seriam formadas por uma mistura variável de quatro "elementos": terra, água, ar e fogo. Daí estarem sujeitas a mudanças constantes. A partir da órbita da Lua, porém, um outro tipo de matéria, a nobre "quintessência", tornava os corpos celestes perfeitos, eternos e imutáveis. Antes de Galileu, essa falsa idéia foi contestada por filósofos como Nicolau de Cusa (1401-1464) e Giordano Bruno (1548-1600) e astrônomos como Ticho Brahe (1546-1601) e Johannes Kepler (1571-1630). Faltava-lhes, porém, uma prova irrefutável, que pudesse contrapor à enorme autoridade de Aristóteles. Ao descobrir o relevo da Lua e constatar, pouco depois, que as manchas solares se deviam a "exalações" do próprio Sol, Galileu encontrou essa prova. Assim como a Terra, também os astros passavam por transformações. Deviam, portanto, ser compostos do mesmo tipo de matéria. Essa nova perspectiva permitiria que, meio século mais tarde, Isaac Newton (1642-1727) unificasse a física terrestre à física celeste e, sobre essa base, edificasse sua teoria da gravitação universal.

Em março de 1610, num livreto de apenas 24 páginas, que trazia o título latino de Sidereus Nuncius (Mensageiro das Estrelas), Galileu comunicou ao mundo a maior parte de suas descobertas astronômicas. Poucas vezes um relatório científico causou tanto impacto sobre a visão de mundo de seus contemporâneos. Johannes Kepler, talvez o maior astrônomo de todos os tempos, chorou de emoção ao lê-lo. E, em apenas 11 dias, escreveu um entusiasmado panfleto em sua defesa. A pronta acolhida de Kepler prenunciou o apoio que a obra iria conquistar nos meios cultos da Europa. Galileu dedicou o livro a Cosimo II, grão-duque da Toscana e chefe da poderosa família Medici. E batizou as luas de Júpiter com o nome de "astros mediceus". Em julho de 1610, Cosimo o nomeou "primeiro matemático e filósofo do grão-duque de Toscana" e "primeiro matemático da Universidade de Pisa", sem obrigação de residência e ensino. Galileu assumiu o cargo em setembro e passou a morar no Palácio Medici, em Florença. Pouco depois, viajou a Roma, onde foi recebido em triunfo. Sentiu-se então suficientemente prestigiado para jogar uma carta que trazia há anos escondida na manga.

O

 inventor

 

Além de cientista, Galileu foi também um inventor de talento. E suas criações, todas elas feitas no início da carreira, lhe asseguraram importante remuneração extra.

Ele construiu uma balança hidrostática (1586), uma bomba d'água para irrigar o solo (1593), um compasso geométrico de uso militar (1597) e o pulsilogium, um instrumento para diagnóstico médico destinado a medir a pulsação dos pacientes.

Debate teológico
Décadas atrás, ele havia aderido ao modelo heliocêntrico do polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), que afirma o movimento da Terra em torno do Sol. Jamais ousara defendê-lo publicamente, porém, com receio de ser hostilizado pela conservadora comunidade acadêmica, partidária de tudo que viesse do aristotelismo, inclusive o modelo geocêntrico do greco-alexandrino Cláudio Ptolomeu (século 2 d.C.), que fazia a Terra ficar imóvel no centro do cosmo. Com o sucesso do Sidereus Nuncius, Galileu julgou que chegara a hora de se pronunciar a favor de Copérnico.

Ele o fez num texto publicado em 1613, Istoria e dimostrazione intorno alle macchie solari (História e demonstração sobre as manchas solares). Seu discretíssimo elogio do sistema copernicano não ocupou mais do que três linhas no final da obra. Foi o suficiente, porém, para assanhar os acadêmicos aristotélicos. Um deles, Lodovico delle Colombe, escreveu um tratado no qual, com base em citações da Bíblia, negava o movimento da Terra. Em plena Idade Média, e trabalhando com idéias que vinham desde a Antigüidade, o grande filósofo cristão João Escoto Erígena (século 9) sustentara que cada passagem das Sagradas Escrituras admitia inúmeras interpretações. É uma incrível prova de decadência intelectual que, 700 anos mais tarde, os acadêmicos italianos regredissem a uma leitura literal e ingênua do texto bíblico.

Galileu poderia ter simplesmente ignorado esse tolo falatório, que em nada abalava sua reputação. Possuía, porém, um temperamento exaltado e resolveu polemizar com os adversários no perigoso terreno da teologia. Num texto que ficou famoso, a Carta à Grã-Duquesa Cristina de Lorena, dirigida à mãe de Cosimo II, escreveu: "A Sagrada Escritura e a natureza vêm, todas as duas, da palavra divina. Mas, enquanto a Bíblia, acomodando-se à inteligência do comum dos homens, fala, na maioria dos casos e com razão, a partir das aparências, e emprega termos que não são destinados a expressar a verdade absoluta, a natureza se conforma, rigorosa e invariavelmente, às leis que lhe foram dadas. Não se pode, apelando aos textos das Escrituras, colocar em dúvida um resultado manifestamente adquirido por observações seguras e provas suficientes".

Esse argumento seria adotado, no século 19, pela própria Igreja. Na época, porém, só fez aumentar ainda mais o número dos inimigos de Galileu. Enquanto continuava a ser intensamente adulado por cardeais cultos e sofisticados, como Matteo Barberini, o cientista tornou-se alvo de ataques de padres ignorantes, cujas pregações exerciam forte impacto emocional sobre os fiéis.

A traição dos padres
Loucos para ver a lenha queimar, os dominicanos do Convento de São Marcos, em Florença, encaminharam uma cópia da carta, com duas passagens deliberadamente adulteradas, à apreciação do Santo Ofício – a temível Inquisição, que, entre tantos outros, já havia enviado à fogueira o filósofo Giordano Bruno.

O poder da Igreja encontrava-se, então, seriamente ameaçado pela propagação da Reforma protestante. Nessa conjuntura de crise, o conservador papa Paulo V resolveu agir de maneira rápida e truculenta, como era seu costume. Em 24 de fevereiro de 1616, atendendo a determinações expressas do papa, o tribunal do Santo Ofício colocou o tratado de Copérnico De revolutionibus orbium coelestium (Sobre a revolução dos corpos celestes) no index dos livros proibidos. E condenou o modelo heliocêntrico como "absurdo e herético" e a teoria do movimento de rotação da Terra como "errônea na fé".

Protegido pela fama, por amigos influentes e pelo prestígio político da família Medici, Galileu não foi sequer citado no processo. Dois dias depois da sentença, porém, o cardeal Roberto Bellarmino, presidente do tribunal, o chamou ao seu gabinete e o intimou, em nome do papa, a "abandonar inteiramente" sua opinião e "abster-se de sustentá-la de qualquer maneira", sob pena de "ser submetido a processo diante do Santo Ofício". Galileu prometeu obedecer. Ficou sete anos sem escrever nada de importante. Mas o ressentimento o consumia por dentro. Em 1623, publica Il Saggiatore (O Ensaiador), no qual, retrocedendo à interpretação de Aristóteles e contra a correta opinião de Ticho Brahe, negava que os cometas fossem corpos celestes reais e os qualificava como simples ilusões de óptica, causadas pela reflexão dos raios solares sobre emanações que se elevavam nas altas camadas da atmosfera. O que o levou a cometer esse erro científico foi um dogma, herdado da antiga cosmologia grega, do qual Galileu jamais se libertou: a idéia de que todos os astros deviam percorrer trajetórias rigorosamente circulares, com velocidades constantes. Algo que não se ajustava, de forma alguma, ao movimento acentuadamente excêntrico dos cometas.

O Saggiatore foi escrito como uma áspera crítica ao astrônomo jesuíta Horacio Grassi, membro do Collegium Romanum e partidário de Ticho Brahe. Mas não havia em seu texto nada que desafiasse a proibição do Santo Ofício. No mesmo ano de 1623, porém, os ventos viraram subitamente a favor de Galileu. Ninguém menos do que Matteo Barberini, seu grande admirador, acabava de ser eleito papa, adotando o nome de Urbano VIII. Inteligente e culto, mundano e politiqueiro, vaidoso e cínico, Barberini dizia saber mais do que todos os outros cardeais juntos. Em 1616, opôs-se ao decreto do Santo Ofício e intercedeu a favor de Galileu. Em 1620, dedicou-lhe o poema Adulatio Perniciosa (Perigosa Adulação). Depois de eleito papa, chamou-o à sua presença, cumulou-o de favores e manteve com ele seis longas conversações.

Apesar dos argumentos de Galileu, o novo papa recusou-se a revogar o decreto de 1616. Mas encorajou o cientista a escrever o que quisesse em defesa do sistema copernicano, desde que evitasse argumentos teológicos e o apresentasse como uma hipótese matemática, que, sem ser necessariamente verdadeira, explicava a contento certos fenômenos. Galileu botou mãos à obra e passou seis anos redigindo um novo tratado.